Quem pariu Améfrica?: trabalho doméstico, constitucionalismo e memória em pretuguês

Juliana Araújo Lopes

Resumo


Este artigo revisita o debate constitucional sobre história e memória nacional no discurso dos juristas a partir da categoria político-cultural de amefricanidade, entendendo o trabalho reprodutivo como aspecto central do mito da democracia racial. Trazendo para o centro do debate as contribuições da tradição intelectual das mulheres da diáspora africana, retoma as lutas por direitos do movimento associativo/sindical de trabalhadoras domésticas no Brasil. A participação das domésticas na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 foi marcada pelo silenciamento de suas demandas por serem consideradas “como se fossem da família”. Essa experiência chama atenção para a relação entre direitos fundamentais e imagens de controle, articuladas em torno da degeneração da sexualidade e da maternidade de mulheres negras. Entre a casa grande e a senzala, a família é o espaço de disputa do papel dessas mulheres no constitucionalismo brasileiro. Inseridas no seio do lar da família brasileira, ao mesmo tempo dentro e fora dela, elas são o emblema do discurso de harmonia entre as raças que atravessa o mito fundador, ao mesmo tempo como a mãe preta amorosa e leal que cria crianças brancas e a mucama fogosa cujo estupro possibilita a miscigenação, símbolo produtivo e unificador da brasilidade. A partir da tensão entre imagem e linguagem apresentada por Lélia Gonzalez, compreendendo a mãe preta como a mãe na cultura brasileira, o pretuguês revela a amefricanidade denegada; possibilitando o reconhecimento e a reparação dos traumas do colonialismo presentes na democracia a partir da agência política das trabalhadoras domésticas.

Palavras-chave


Constitucionalismo brasileiro; Trabalhadoras domésticas. Amefricanidade; Feminismo Negro; Ancestralidade.

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DOI: https://doi.org/10.5102/rbpp.v10i2.6900

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